segunda-feira, 17 de outubro de 2011

XOXÓ VAI AO SALÃO E REVELA O QUE TODOS SABEM MAS NINGUÉM OUSA DIZER

'NESTA CIDADE TODO MUNDO É DE OXUM'         
            para Luiz Mott e Olavo de Carvalho: amigas fraternas de todas as horas

Só eu
que sou
a biba
poetisa!

O resto?
O resto
é tudo
enrustida.

Mayrete e
Carlete
são como
chiclete,

grudadas,
surradas,
caçando
pivetes;

disfarçam o
raibã,
mas fazem
boquete.

A Guga,
minha filha,
imita
a Ivete,

mostrando a
calcinha,
só vive
de frete;

se faz
de santa,
mas abre
o leque!

A Inácia,
coitada,
odeia a
Guguete

e assiste
de noite a
novela
das sete,

só fala
em cavalo
mas gosta é
de jegue.

Vivia
colada
na tal
Elizete,

bicha
mendiga,
adora
croquete!

Um dia a
Leílta
pintou
o sete,

chamaram
a Inácia
de puta
peguete,

babava
demais
os pobres
dos mestres.

Tem uma
que é velha
(um caco, a
caquete)

é a tal
da Espinha,
que é burra e
repete

o tempo
inteiro
o mesmo
claquete.

Antonia
de Feira
roçava a
Perrete,

marica
nervosa
com muito
topete.

Silvéria
maluca,
careca e
solerte

armou
um plano
de ser
a vedete

mais lida,
cozida,
comida,
um crepe,

porém,

não tinha
recheio
o doce
da Grete.

                      De Caribó Literato,
                      corno, poeta e viado

                    

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

XOXÓ ENTREVISTA PEDRO SETTE-CÂMARA


Pedro Sette é bem legal, um menino singular... Tradutor, ensaísta e autor de teatro, o jovem Pedro Sette-Câmara nos diz nesta entrevista ter abandonado o desejo revolucionário de reconstituir contextos sócio-culturais, explica como teve início, a partir de acontecimentos pessoais, a sua necessidade de escrever textos dramáticos e ainda encontra disposição para nos dar alguns “toques” sobre a obra do filósofo francês René Girard. Abaixo, vocês podem conferir o papo “reto”, inteligente e inspirador desta grande promessa da literatura brasileira no século XXI.              


X. Pedro, você vem aos poucos desenvolvendo uma interessante carreira de escritor – traduzindo, escrevendo pra teatro, discutindo e apresentando poesia, questões políticas, filosóficas etc. Como começou tudo isso e onde vai parar?

P. Bem, cada coisa começou de um jeito. A tradução veio por duas razões: de um lado, a mera necessidade de ganhar a vida; de outro, a admiração pelo trabalho do tradutor. Com 18 anos eu fui morar nos EUA, e passei um ano e meio naquele país. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi como o português dos brasileiros se desagregava, como havia diferenças e semelhanças entre os idiomas etc. Esse tipo de pensamento vem naturalmente para mim. Se eu parar de trabalhar como tradutor, vou continuar prestando atenção na maneira como as pessoas se expressam e pensando em como se diz tal coisa neste ou naquele idioma.

O teatro veio não sei de onde. Com uns 20 anos eu sabia que queria ser dramaturgo, e tinha várias ideias. O tempo inteiro eu fico enxergando peças e personagens à minha volta. Mas precisei passar por uma experiência traumática para entender que tinha de começar a escrever: em junho e julho de 2007, no espaço de 36 dias, 4 pessoas próximas de mim morreram. Eu nunca tinha passado por uma experiência assim, e entendi de maneira muito dura que eu também iria morrer. Fiquei apavorado diante da ideia de deixar a vida passar e não escrever teatro. Escrevi a minha primeira peça basicamente para mostrar para mim mesmo que eu era capaz de produzir algo que ficasse de pé. Agora estou trabalhando em novos textos, mas com mais tranquilidade, porque eu já estou fazendo o que quero, não estou adiando mais nada. Adiar, adiar, adiar; tomorrow, tomorrow and tomorrow, esse é o meu maior defeito.

“Discutir e apresentar poesia” vem de outra razão. Eu sempre gostei muito de poesia (e sempre tive relativamente pouco interesse pela leitura de romances). Um dia eu estava com um amigo na Livraria da Travessa em Ipanema, aqui no Rio. Um grande amigo, de infância, um sujeito irrepreensível, inteligente, engenheiro, casado à época, pagador das próprias contas etc. Mostrei-lhe um poema de Augusto dos Anjos (“Eu, filho do carbono e do amoníaco...”) e ele me disse o seguinte: “Eu não consigo ler isso com a mesma fluência que você.” Então eu vi que era necessário falar de poesia de um jeito que levasse as pessoas a gostar de poesia e a entender de poesia. Aqui eu poderia me estender muito. Há todo o desserviço escolar, questões naturais de teoria da informação, questões cognitivas etc. Mas eu gosto de poesia e acho que é perfeitamente possível, dentro de uma ampla faixa, distinguir o bom do ruim, apresentando razões bastante plausíveis. Não me agrada a ideia de as pessoas terem diante da poesia a postura que aparentemente costumam ter diante das artes plásticas, em que você não sabe se está diante de um gênio ou de um picareta. Eu não sei fazer essa distinção em artes plásticas, mas acredito que alguém sabe, e pode me ensinar.

As questões políticas são fáceis. Sou muito reativo. Um dia eu estava na casa do Dr. Julio Fleichman e a esposa dele falou assim: “O Julio lê jornal e fica brigando com as pessoas.” Dei uma gargalhada, porque sou exatamente assim. Já pensei até em parar de ler. Com o tempo, você vai notando que há um padrão recorrente nas suas indignações, e assim descobre a sua ideologia. Eu tendo a crer que as atitudes ideológicas nascem primeiro na sensibilidade e só depois são verbalizadas. Mas enfim: falar de determinadas questões políticas está para mim no mesmo nível de conversar, é algo que eu faço naturalmente, sem esforço nenhum.

Quanto às questões filosóficas, rapidamente eu percebi que não era filósofo. Eu apenas menciono questões filosóficas. Estou sempre querendo subordinar as coisas que aprendo a algum propósito. Tem aquela parábola em que Jesus diz que um dia o administrador ouvirá do senhor a pergunta: “Que fizeste dos talentos que vos dei?” Eu sempre imagino que aquilo que eu terei feito, se é que não vou passar vergonha, serão objetos verbais. Conheço pessoas que têm critérios bem mais rigorosos do que os meus para questões filosóficas, além de um interesse obviamente bem maior. Mas isso não me inquieta.

Onde tudo isso vai parar? Não tenho a menor ideia. Eu só espero conseguir terminar de escrever o meu atual projeto de teatro (mas não quero falar sobre ele, porque se eu fico falando de uma coisa ela perde a graça para mim). Cada vez mais eu vou tirando energias de outras coisas e colocando em teatro. Gostaria de escrever alguns poemas também.


X. Se não estou enganado, você se coloca, muitas vezes, como defensor do catolicismo, liberalismo, conservadorismo... como se deu este encontro com a luz (risos)? A apreciação de tais ideias traduz de fato uma visão de mundo amadurecida ou vem a se configurar como a busca desesperada de reconstituir um contexto sócio-cultural para que as obras de Dante, Shakespeare, Bach, Antonello, Vermeer, Sibelius etc. possam ainda ser apreciadas? Estamos todos em busca de uma causa? Fé, militância ou estetismo?

P. Quanto à primeira pergunta, nem um, nem outro. Eu nasci católico numa família que era relativamente indiferente (hoje meus pais são bem católicos). Nasci liberal e nasci meio conservador. Quer dizer, algumas coisas são para liberar, outras são para conservar. Talvez eu tenha também mudado as minhas premissas, ou as minhas motivações, mas a conclusão continua basicamente a mesma no que diz respeito à política e à economia. Acho que o ser humano é violento e que um arcabouço jurídico de tipo anglo-americano é mais vantajoso na administração da violência. Claro que tem questões culturais envolvidas, mas estou dando uma resposta bem sintética. Sintética de propósito, porque se eu começar a falar dessas questões culturais... Sou bastante sensível ao texto “As ideias fora de lugar”, de Roberto Schwarcz. Sensível ao conteúdo, porque, Deus do céu, que texto chato, são as palavras fora de lugar ilustrando a ideia das ideias fora de lugar. Mas bem.

Tive durante um bom tempo o desejo revolucionário e completamente imbecil (perdoável por causa da juventude, espero que Deus pense assim) de “reconstituir um contexto sócio-cultural”. Acho que fui assim porque, admito, tenho o temperamento jacobino, briguento. Mas hoje esse tipo de energia está devotada para coisas mais eficazes e específicas. “Reconstituir um contexto sócio-cultural” são palavras que hoje eu sequer consigo entender. Agora, escrever uns textos sobre poesia para que algumas pessoas possam apreciá-la, isso eu entendo. É algo tangível. E é algo que depende de mim. O “contexto sócio-cultural” depende dos outros, e eu não sei o que eles vão querer fazer, e não me julgue blasé, que eu sou a pessoa menos blasé do mundo, se eu disser que realmente não estou nem aí para o que os outros vão querer fazer, desde que eu não tenha de ouvir nem de assistir. Estou satisfeito com o fato de que eu mesmo aprecio Shakespeare e tenho amigos com quem conversar a respeito.

No mais, eu não sei se estamos todos em busca de uma causa. Eu suspeito que eu também nem entenda essa pergunta direito. Acho que Viktor Frankl está certo: queremos um sentido, isso sim. Eu sei que a minha vida tem alguns sentidos: tentar ser uma pessoa mais gentil, que adia menos as coisas, que escreve peças de teatro etc. Não que eu ache que o sentido da vida precisa ser algo cheio de glamour como “escrever peças de teatro”. Tentar ser uma boa pessoa, que torna a vida dos outros melhor, já é sentido mais do que suficiente. Tentar ser bom irmão, amigo, pai, mãe, filho etc. Dizer isso soa banal. Mas é banal de dizer e difícil de fazer. Por isso tudo, talvez alguma fé, pouca militância e estetismo acho que nunca.


X. Até que ponto o seu contato com o filósofo Olavo de Carvalho influenciou esses posicionamentos?  

P. Não creio que tenha sido uma influência em relação aos posicionamentos, porque acho que eu era basicamente a mesma pessoa, com os mesmos interesses, antes de conhecê-lo. Mas é claro que fui influenciado, ainda de outras maneiras. A primeira influência vem da apresentação de uma certa bibliografia, que inclui o próprio René Girard. Girard já era conhecido no Brasil, mas pela via da Teologia da Libertação, e isso é praticamente uma garantia de que eu o teria descartado sem pestanejar. A segunda influência vem da atenção a certos temas. Olavo de Carvalho faz um meio de campo importante no Brasil, porque a imprensa é bastante limitada, chegando no máximo a reproduzir alguns – ênfase em alguns – dos debates da grande imprensa anglo-americana ou europeia (continental), particularmente francesa e espanhola, e a universidade permanece bastante isolada das pessoas que pagam impostos para sustentá-la. Aliás, quando um professor universitário brasileiro lança um livro que o público leigo consegue entender, é um sucesso. A terceira influência viria da maneira de debater, porque Olavo de Carvalho é um mestre da argumentação, sem paralelo entre os demais autores vivos do nosso idioma. E deve haver outras influências.


X. Texto dramático, poético, narrativo... há uma expressão literária que se associe melhor aos tempos em que vivemos ou tais expressões concorrem para forjar o tempo em que vivemos? Em outras palavras, como uma inspiração artística se transforma num poema ou numa peça de teatro, em sua experiência criativa?

P. Bom, há aqui duas perguntas mui distintas. Não sei se há uma expressão literária mais adequada aos famosos tempos em que vivemos, mas digo “não sei” como quem consegue pensar em argumentos contra e a favor de todas elas. E eu posso cometer uma injustiça com a maior facilidade, dizendo que aquelas formas de expressão pelas quais eu me interesso é que são as mais vigorosas, mas isso seria só uma confusão entre as minhas preferências e algo que talvez nem possa ser julgado com grande objetividade. Sem contar que nem posso falar do romance porque simplesmente não tenho o hábito de ler romances, embora tenha muita vontade de ler alguns, como os de Dostoiévski e o do Karleno Bocarro.

Mas quero enfatizar que eu não acho que nenhuma forma esteja esgotada em si. Desde as vanguardas europeias do começo do século XX é moda dizer que o teatro acabou, a poesia acabou etc. Hoje em dia já falam do “teatro pós-dramático”. Claro que nisso há aquela confusão que eu mesmo quero evitar: se você fica numa faculdade filosofando sobre teatro o dia todo, lendo coisas em alemão, você pode achar que há um esgotamento do drama, mas as pessoas consomem folhetins na TV sem parar, o cinema dá dinheiro, e às vezes até o teatro dá dinheiro. Se o artista não tem consciência nem da sua situação imediata, se ele mesmo não percebe que tem tudo pago para experimentar com o teatro, não impressiona também que ele ache que tudo se esgotou e, em vez de fazer coisas, fique filosofando a respeito das coisas que não faz.

Sobre a minha própria “experiência criativa”, só posso dizer que todo dia eu tenho uns quatro ou cinco projetos de peças. Eles vêm na forma de imagens, de premissas. De vez em quanto algum deles fica na minha cabeça, e eu começo a burilar aquilo. Acho que com outras pessoas não é muito diferente.


X. Por que Girard?

P. Conheci a obra de Girard em 1999, mas só conheci mesmo, de me aprofundar, em 2008. Basicamente eu fiquei muito interessado pela questão do efeito Werther, de por que as pessoas imitam suicídios. Daí eu simplesmente lembrei: esse tema parece com aquele cara, René Girard. Violência e imitação.

Quando comecei a ler Girard de verdade, vi que sua obra era a continuação natural de coisas que eu já pensava a partir das obras de Geoffrey Hill e de W. H. Auden. Só que, enquanto eles apresentavam intuições em forma poética, metafórica, René Girard apresentava as explicações bonitinhas, organizadas. Por exemplo, Auden diz em “Horae Canonicae”: “Without a cement of blood, no secular wall will stand.” (“Sem um cimento de sangue, nenhum muro secular fica de pé.”) Aí você lê Girard e pega a lei geral: resumidamente, é o bode expiatório, que funda a cultura pagã, e que ainda está presente em nossa cultura.

Ler Girard é algo que demanda uma espécie de conversão cognitiva. Por razões pessoais, comecei esse processo em 2003, quando comecei a ler Auden, que foi muito importante para mim, um verdadeiro modelo. Estou falando em conversão cognitiva, mas ao menos no meu caso também poderia falar de conversão religiosa. Consiste basicamente em ter golpes de humildade, em olhar para si mesmo, ver o rastro de destruição que você mesmo deixa, a distância entre seus ideais declarados e o que acontece na famosa vida real. Em deixar de se achar Abel e reconhecer-se Caim, em ver as suas invejas e mesquinharias. Você perde a ilusão de autonomia, mas não no sentido de admitir-se escravo de um terrível princípio impessoal. Você pode escolher o que fazer.

Sem contar que, como crítico, Girard reúne diversas qualidades. Primeiro, ele diz que as ideias dele mesmo não são dele, mas que estão em outros autores, e autores literários! Ele mostra como Proust, Dostoiévski etc. são teóricos do desejo mimético. E o caso mais evidente é o de Shakespeare, que tinha não só a teoria do desejo mimético, que ele chama de “suggested desire”, como a do bode expiatório.  Para alguém que, como eu, sempre usou a literatura para entender a vida, isso é maravilhoso. Segundo, ele apresenta as coisas de maneira sistemática, o que é uma vantagem se você está dentro de uma universidade e portanto tem propósitos ao menos nominalmente científicos. Terceiro, é algo que você pode aplicar imediatamente à própria vida, reconhecendo o próprio mimetismo, o que permite que você se livre de muito ressentimento. Quarto, as teorias são simples de enunciar, mas as aplicações podem ser incrivelmente sofisticadas. Eu realmente acho que Girard será mais importante no século XXI do que Freud foi no século XX, por exemplo.


X. Você pode então nos dar a dica de por onde começar a ler este autor?

P. Girard se repete bastante, sobretudo porque suas obras estão sempre lançando premissas que só serão desenvolvidas depois. No evento recente da É Realizações, eu cheguei lá todo feliz, dizendo que tinha encontrado em O Bode Expiatório um parágrafo que parecia resumir Rematar Clausewitz. Aí já começaram a me dizer que, se você olhar bem, o primeiro livro, Mentira Romântica e Verdade Romanesca, já contém tudo.

Mas eu acho que uma bela visão geral das ideias de Girard, inclusive de sua evolução, pode ser dada por três livros. Primeiro, Shakespeare: Teatro da Inveja, que resume bem tudo que Girard pensou até aquele ponto, e ainda é o melhor livro jamais escrito sobre a obra de Shakespeare, o único que se atém exclusivamente ao próprio texto das peças. Segundo, Evolução e Conversão, que é uma versão maior de Um Longo Argumento do Princípio ao Fim, que traz considerações importantes sobre os possíveis elos das teorias do desejo mimético e do bode expiatório com a teoria da evolução, e correções do próprio Girard quanto a seus posicionamentos religiosos. Terceiro, Rematar Clausewitz, que sem dúvida é a exploração definitiva (até agora) das premissas contidas nas obras anteriores. Os outros livros têm explicações sensacionais sobre outros assuntos, também muito relevantes, mas acho que o esqueleto da teoria está todo nesses três livros. Mas, se fosse para indicar um só, seria o Teatro da inveja.

O fato de eu ter traduzido dois desses livros e parte do outro (Evolução e Conversão) é realmente mera coincidência.


X. Quero crer que vivemos hoje no Brasil um momento de efervescência cultural. Há uma bomba prestes a explodir no colo de todos nós. A confusão é generalizada e a desconfiança é o norte magnético de todo olhar. Entretanto, há uma marca d’água perpassando essa Babel que diz assim: “de qualquer jeito não dá mais, é preciso algo além do discurso”. Se não estou louco ou dopado, há um renascimento classicizante na arte brasileira ou estaremos para sempre confinados a esse barroquismo desenfreado?

P. O que eu acho é que há uma profissionalização forte, porque a produção literária atual é muito ligada às universidades. Claro que você pode ser um direitista ensandecido e achar que as universidades brasileiras são todas um lixo, mas aí eu devo observar que provavelmente você fala e escreve mal em português, não entende nenhum outro idioma, e não costuma passar da página 20 dos livros que lê.

Eu mesmo brinco e tenho um termo para esses novos “profissionais”: são os bibliotecários de Alexandria.  O que nós temos produzido de melhor é bastante sofisticado e pouco sentimental. Ou, muitas vezes, bastante irônico. O fato é que em círculos mais “sérios” não vejo espaço para sentimentos derramados, apesar de esse ser o gosto do público. Lembro de quando o Bruno Tolentino publicou um poema, em “O mundo como Ideia”, que tinha os versos “Eu vim para esquecer / ou para perdoar” e algum jornalista falou que aquilo era um toque de Roberto Carlos. Bruno ficou ofendido, indignado, quando eu lhe contei dessa resenha. Mas isso porque ele vinha de uma geração em que você podia ser sentimental e ser cool. Drummond é sentimental, Bandeira é sentimental etc.

(Aqui eu posso vir a ser acusado de desconhecer parte da produção contemporânea. Mas o Brasil tem mais poetas do que leitores de poesia, não dá para conhecer todo mundo.)

O efeito imediato dessa profissionalização toda pode ser uma certa rarefação. Mas o principal efeito a médio e a longo prazo é um efeito que já sentimos: o aumento do nível geral.

A questão, enfim, é extra-estética. Quanto mais houver acesso a universidades, à internet, a bibliotecas, a bolsas de estudo etc., mais o nível tende a subir. Podemos até vir a ter uma onda mais sentimental com pleno rigor formal. Acho, aliás, que esses fatores sociais são indevidamente obscurecidos na história da literatura. As influências estéticas vêm tantas vezes de pessoas que simplesmente têm dinheiro para viajar... Já era assim no século XVI português, foi obviamente assim no século XX brasileiro (aqueles modernistas todos... viajavam!), e continua a ser assim hoje. Só que hoje você pega uma bolsa e vai. Ou simplesmente vai. É mais barato. Tudo é mais barato. A verdadeira questão estética hoje é o que fazer quando há tanta informação disponível. Naturalmente, a primeira resposta, como na biblioteca de Alexandria, é demonstrar um amplo domínio dessas informações para quem é capaz de compreender o que você está falando.


X. E a tradução de literatura, anda a todo vapor ou como é que é?

P. Estou traduzindo um romance americano para uma editora e brigando com um famoso poema inglês, que não quero dizer qual é. Mas depois disso espero traduzir mais romances. Para variar. É bom. Gosto de pensar em soluções estéticas, mesmo que eu não leia romances habitualmente.


X. “O aumento do nível geral” tem influenciado a arte da tradução no Brasil? Traduz-se mais e melhor hoje do que antes? 

P. Acho que quem poderia responder a essa pergunta é a Denise Bottmann! O Brasil tem hoje muitos tradutores literários bons, e temos o aumento do número de traduções diretas de idiomas que poderiam ser considerados “raros” (esse é um termo técnico do mercado), como o russo.

A tradução literária sempre vai ser um mercado misto. Mas acho que algumas grandes editoras estão realmente se distinguindo pela qualidade geral média. Não sei se o público é capaz de perceber isso, a ponto de querer pagar talvez um pouco mais. Mas quem é tradutor é perfeitamente capaz de perceber...


X. Quando surgiu aquela polêmica toda relacionada ao fato de a Maria Bethânia ter saído com a cuia na mão pedindo dinheiro ao governo pra fazer um site com declamação de poemas, eu lembrei imediatamente de você, do “Domingo com poesia”. Pensei: se ela tá pedindo um milhão e trezentos, o Pedro, que, além de recitar, ainda discorre tão bem sobre o texto lido, deveria ganhar 5 milhões. Por que acabou, para mim, um dos mais interessantes eventos da nossa blogosfera? Vai aqui um pedido: dá pra fazer um tapezinho com algum epigrama só pra alegrar Xoxó?

P. O Domingo com poesia foi interrompido justamente porque é difícil manter uma obrigação periódica sem ser remunerado por ela, e sem que ela seja sua religião. A minha cabeça está muito voltada para o teatro, e escrever sobre poesia é hoje um pouco penoso, no sentido de que eu tenho de tirar a minha atenção de onde ela quer estar. Acho bem possível que eu um dia relaxe mais e volte a escrever sobre poesia assim, só apresentando poemas, de maneira descompromissada. Mas se for por cinco milhões, então é só me dar os prazos que eu começo agora mesmo.

Olha, um dia, na faculdade, eu traduzi um epigrama de Calímaco. De repente esse! Mas eu teria de pegar uns cadernos que já pus no fundo de um armário. Ou traduzir de novo... Vamos ver se eu sei pronunciar grego antigo direito – provavelmente não.

sábado, 24 de setembro de 2011

INTERLÚDIO LÍRICO: XOXÓ APRESENTA AOS SEUS LEITORES TEXTO DE JUVENTUDE RECUPERADO NUMA GAVETA VELHA

PAIDEIA    
para João Paulo

são teus, meu pai, os frutos
         duramente
         não colhidos.
A. Brasileiro
       
      Filho, não sei por onde caminhamos,
    sei apenas que essas terras em que vamos
    são o pó de nossa própria carne.
    Agora, fecha os olhos, já é tarde,
      e não conta as estrelas - todo brilho
    respandlece num sono simples, filho.
    Enrola-te na colcha que te trouxe 
    e adormece as venturas, somos hoje.
      Amanhã cedo, cedo voltaremos
    à marcha, não haverá fôlego para,
    cansados, debulharmos o caminho.
      Como aves que se fiam em suas asas,
    calados, solitários, seguiremos
    feito apenas de nós o nosso ninho.
    
       Pai... Ô pai... Como sossegar sem sono?
    Aceito tuas ordens mas não domo
    os espaços vazios pulsando em mim.
    E se eles atormentam, fico assim,
      inquieto como um cão doido, no cio,
    trincando os dentes, que chacoalham ao frio
    de mais uma noite finda só, ao relento.
    Iremos sempre chocalhos do tempo?
      Amanhã seguiremos, assim seja;
    depois também, estou reconfortado
    já que de pó foi feita a nossa carne.
      Não podemos estar a tantos passos
    desse lugar desencontrado, vejo
    montes crescendo, pai, aos meus olhos que ardem. 

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

BALADA PARA UM SACO DE BATATA

para Bira Gordo e Jô Soares

Só a lipoaspiração bem-sucedida,
o silicone e o photoshop, mais nada (...)
Marco Catalão


ABDOMINOSCOPIA
Tranquila sopra a brisa
e em mil tragos contínuos,
com a ânsia de um menino,
o meu peito se atira
cego, nem desconfia
que entre boca e intestino
há o tal metabolismo
(abdominoscopia)
a pulsar lentamente.
Oh cágado insolente,
eu já não passo em porta,
tenho um bolo na aorta,
sou um ser que comporta
toicinho até nos dentes.

                                             De Caribó Literato,
                                             corno, poeta e viado         

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

XOXÓ ACOMPANHA ÉRICO NOGUEIRA E JOÃO ANGELO OLIVA NETO À FESTA DE LANÇAMENTO DA EDIÇÃO DE BOLSO DA ILÍADA E DA ODISSÉIA NA FENOMENAL TRADUÇÃO DE CARLOS ALBERTO NUNES E SAI DE LÁ INDIGNADO COM A BURRICE DOS PREPARADORES DE ORIGINAIS


ERRATA
Em lugar de Ulisses,
Leia-se Odisseu.
Preservem o dactílico
Pelo amor de Deus!

                                 
                                   De Caribó Literato,
                                   corno, poeta e viado

(Os livros Ilíada e Odisséia foram recentemente publicados em edições de bolso pela Editora Saraiva)   

domingo, 18 de setembro de 2011

AO MESMO TEMPO BROXA E PUNHETEIRO?

Abrem, ébrios, seus livros que se acabam
Nas estantes do mundo (...)
A. Bueno

MOTE
Ao mesmo tempo broxa e punheteiro?

GLOSA
Ao mesmo tempo broxa e punheteiro,
o braço lasso de lutar contra a barriga,
costa arqueada como o arco de uma lira,
mergulha a mão no ninho de pentelho.

E aí então, meu Deus, começa a briga:
chacoalha a glande adormecida lá no meio,
aperta os ovos com bravura e, sem receio,
se lasca numa espiga bem comprida.

Assim tem sido há anos seu enleio,
sua aventura de compor uma cantiga
que seja ao mundo mais que a lágrima caída
por ter nascido feio e sem dinheiro.

Ruy Espinheira, vate da desdita,
vem sempre algo pior, escuta este conselho:
compre tesoura nova e apare bem seus pelos
pra não perder a mão em meio à pica.

                                                                  
                                                                   De Caribó Literato,
                                                                   corno, poeta e viado

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

AQUARELA DE CARIBÓ

Cegas à contraluz, as formas correm 
de encontro ao olho da visão
Bruno Tolentino

para Caius Marcellus 

PUROVISIBILISMO
O sol que estende o trigo no horizonte
é ovo esparramado na panela,
é mancha de mostarda na lapela,
é manga descascada e não se come;
mas breve o quanto é breve o que responde
a todos que lhe chamam para a festa,
desaparece o trigo, o ovo cresta
quando por um momento o sol se esconde.
E o verbo em seu favor tornou-se nome,
aguada com que Deus pintou a treva,
perícia de Antonello e borradela
das caras de Warhol morto de fome,
                              morto de medo de sair da sombra...
                              não vê o quanto enfim a luz se alonga.


                                                              De Caribó Literato, 
                                                              corno, poeta e viado